Servidores rejeitam documento que descarta relação entre insegurança alimentar e internações por desnutrição no Brasil
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) envolveu-se em uma controvérsia política, em razão de dados apresentados recentemente pelo chefe da entidade. Presidente da fundação desde março e ex-subsecretário de Política Fiscal da equipe do ministro Paulo Guedes, o economista Erik Alencar de Figueiredo assinou um estudo no qual contesta recentes pesquisas que apontam o aumento no número de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Ao avaliar os impactos do Auxílio Brasil, o documento, divulgado na semana passada pelo Ministério da Cidadania, sustenta que a fome no Brasil não aumentou durante o governo de Jair Bolsonaro.
O estudo menciona a ampliação de programas sociais e um “aumento no poder de compra em termos de cestas básicas”, para concluir que os efeitos da fome não seriam tão graves como sugeridos pela literatura. A tese formulada por Figueiredo é frontalmente contrária a estudos realizados até agora sobre o tema no país por instituições reconhecidas.
Ao analisar diferentes fontes, Figueiredo afirma que o aumento da insegurança alimentar não se refletiu em um aumento de internações médicas decorrentes da subnutrição. “O conjunto dessas evidências sugerem que, se os dados divulgados estiverem mesmo corretos e a insegurança alimentar tiver crescido, ela parece não impactar os indicadores de saúde da população brasileira relacionados diretamente à má nutrição”, observa Figueiredo.
Em seguida, o presidente do Ipea sugere que esse descolamento entre insegurança alimentar e efeitos da fome na saúde do brasileiro resulta de avanços nas políticas sociais do governo Bolsonaro. “Isso ocorreu possivelmente em razão dos programas sociais existentes. Nesse aspecto, merece destaque o avanço que o Programa Auxílio Brasil tem representado, expandindo o número de famílias beneficiárias em todas as regiões do país e aumentando o poder de compra do benefício em termos de cestas básicas”, sustenta no documento, que contém 20 páginas.
O estudo chancelado pelo presidente do Ipea contrasta com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, elaborado pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi. O levantamento mostrou que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil atualmente, mais do que há 30 anos, em um retrocesso das políticas de proteção social.
“Propaganda eleitoral”
O material assinado por Figueiredo não foi discutido nem recebeu parecer de outros pesquisadores, diferentemente do que costuma ocorrer. Em nota, a Associação dos Funcionários do Ipea (Afipea) afirmou que a divulgação desses dados constitui uma violação da legislação eleitoral, que proíbe a publicidade institucional nos 90 dias que antecedem as eleições. “Na tentativa de produzir efeitos e repercussão, o governo Federal utiliza-se da máquina estatal para a produção do que ‘aparenta ser’, na realidade, uma cara propaganda eleitoral. Custa o preço da democracia, do jogo limpo e do respeito às instituições”, criticou a entidade.
Os técnicos do Ipea entendem que não podem nem dar entrevistas no período eleitoral. Tradicionalmente, o intervalo é usado para a organização e sistematização de estudos e pesquisas, que passam a ser divulgados ao fim do embargo.
Para o especialista em direito econômico Rafael Brasil, o estudo é um paper resumido, que não aponta adequadamente a metodologia empregada e não tem transparência total nos dados apresentados. Assim, não pode ser utilizado como parâmetro absoluto para determinar se houve diminuição ou aumento da fome no país. “É sim interessante que mais estudos sejam desenvolvidos para se averiguar se houve ou não a diminuição da fome alegada, bem como suas causas. Mas não deve o Estado, especialmente em período eleitoral, divulgar tais estudos com fito eleitoreiro”, afirmou.
O especialista reforçou a necessidade de que o material seja mais bem explorado. “Especialmente porque a redução da fome deveria vir acompanhada, em minha análise, não exclusivamente da Ampliação do Programa Auxílio Brasil, mas também do fomento de outras políticas públicas de melhor desempenho econômico do Brasil que aqueceria a geração de emprego e renda”, acrescentou Rafael Brasil.
As projeções do presidente do Ipea também são divergentes. Em outro estudo, Figueiredo estimou que as famílias em situação de extrema pobreza serão 4% da população brasileira até o fim do ano. A taxa era de 5,1% em 2019, antes da pandemia. A previsão destoa da tendência apontada pelo Banco Mundial, citada no estudo inclusive, que aponta uma alta global de 15% em relação a 2019.
Fonte; Correio Braziliense