Mulheres da agricultura familiar comandam etapas importantes da produção e beneficiamento do cacau no sul da Bahia, um fato que tem relação direta com mudanças que têm ocorrido no modelo de cultivo do fruto na região. Os coronéis, as grandes fazendas e monopólios de negócios, antes onipresentes, deram lugar a glebas gerenciadas por matriarcas que se definem como “filhas da cabruca”.
A cabruca é o nome dado ao sistema de plantio do cacau que aproveita árvores nativas da Mata Atlântica para fazer sombra e proteger o fruto. Nos últimos anos, as agroflorestas ganharam espaço nos quintais das casas, convivendo com outras plantas. Isso não significa que é algo novo, ao contrário.
As baianas Sidney, Kaleandra e Carine nasceram e foram criadas ouvindo a defesa de que o sistema é a única forma de proteger a floresta. As três desempenham funções diferentes na cadeia do cacau e não trabalham juntas, porém acreditam no potencial do produto baiano de auxiliar na independência financeira de outras mulheres e no aumento da oferta de empregos para os jovens.
Aos 40 anos, Carine Assunção já viajou a outras regiões produtoras de cacau, mas se dedica a provar que o chocolate fabricado com o fruto baiano “é melhor que o da Suíça”. Ela preside a Cooperativa da Agricultura Familiar e Economia Solidária da Bacia do Rio Salgado e Adjacências (Coopessba) e ajuda a atender 300 mulheres, às quais dá orientações para que produzam mais em um espaço menor, mantendo o cacau como “fruto sagrado”, diz.
Mais recentemente, em 2018, ela concluiu um dos projetos que ajudou a idealizar: a criação da Natucoa, fábrica de chocolate ligada à cooperativa que coleta o fruto em 19 comunidades para produzir barras e produtos derivados de chocolate. Os produtores também fornecem outros alimentos regionais, como o coquinho licuri e o caju, que ajudam a incrementar os sabores dos produtos.
Como gerente da fábrica, a meta de Carine é criar uma marca própria ainda neste ano – o que, quando ocorrer, vai engordar o número de rótulos da Bahia, onde já existem mais de 60 marcas. Para que o plano se concretize, o fornecimento e a produção precisam ser padronizados.
O trabalho começa na produção de mudas de clones mais resistentes às mudanças climáticas. Assim, antes de o fruto chegar à sede da fábrica, entre Ilheús e Uruçuca, há mulheres à frente da multiplicação de palmas, que são folhas e hastes da planta de cacau que poderão ser replantadas e distribuídas para produtores.
O processo ocorre no Instituto Biofábrica da Bahia, onde Kaleandra Sena atua como responsável técnica e coordenadora de mudas de fruteiras. A estrutura, que fica a 8 quilômetros de Ilhéus, na divisa com a comunidade Banco do Pedro, conta com viveiros de cacau, mandioca, abacaxi, espécies florestais e até de flores. Todas são repassadas à agricultura familiar.
A biofábrica nasceu em 1999, mas foi só nos últimos anos que ela passou a empregar mais mulheres. Com essa estratégia, as produtoras passaram a ter a opção de construir uma carreira na cadeia do cacau ou, no mínimo, a ter uma nova opção de renda extra, já que quase todas as agricultoras plantam o fruto em suas casas e vendem na feira ou entregam para a cooperativa.
Kaleandra conta que há trabalhadoras registradas na desfolha, a primeira etapa da multiplicação da muda. Outras cuidam dos diferentes viveiros, ensinando a função às novatas da biofábrica. E também há mulheres no trabalho de laboratório, analisando a genética das plantas.
Quem caminha pelos viveiros de cacau chega com facilidade à área da mandioca: é só seguir a cantoria e as risadas de Sidney Lima, de 57 anos, uma das funcionárias mais antigas do local. Ela começou como encarregada de serviços gerais e, 27 anos depois, é supervisora de produção, tarefa em que coordena sete outras mulheres.
“Tive interesse de aprender e fazer. Gosto muito de pesquisar as coisas, e é por isso que cheguei onde estou. Hoje, eu me sinto professora das jovens e quero deixar meu legado para elas para que repassem a seus filhos e para que a cultura da mandioca, assim como a do cacau, nunca acabe na região”, afirma ela.
Filha do vilarejo de Banco do Pedro e criada no campo, Sidney é conhecida como “rainha da mandioca” por diferenciar a olho nu as 37 variedades provenientes da Rede Reniva, projeto da Embrapa voltado à multiplicação e transferência de materiais de propagação da cultura que tenham boa qualidade genética e fitossanitária.
A supervisora de produção conta que, ao longo dos anos, acumulou conhecimentos sobre as características do tubérculo ao observar os pesquisadores e passar a realizar suas próprias pesquisas. “A biofábrica é muito importante na minha vida. Foi com ela que dei estudo aos meus três filhos e de onde tiro meu sustento”, relata.
Carine Assunção, Kaleandra Sena e Sidney Lima acreditam que a Bahia pode voltar a liderar a produção de cacau e mandioca no Brasil (hoje, o primeiro lugar é do Pará) desde que o estado não deixe de priorizar inovação e qualidade. Para elas, a reconquista da hegemonia passará necessariamente pelo trabalho das mulheres locais.
Fonte: Globo Rural