Nos últimos 30 anos, a população e a área de ocorrência do mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas) foram amplamente reduzidas. O que resta vive nas florestas e cabrucas do sul da Bahia, onde as árvores da Mata Atlântica garantem sombra às plantações de cacau nesse sistema agroecológico.
– A conversão de florestas para pecuária, intensificação do manejo nas cabrucas e expansão de cultivos agrícolas como café e eucalipto representa um dos principais fatores de perda de habitat dessa espécie na região.
– Na região, instituições atuam em parceria para conhecer melhor o comportamento dessa espécie em perigo de extinção, garantir o manejo adequado do cultivo de cacau nas cabrucas e evitar que florestas nativas sejam convertidas em pastos e monoculturas.
A área de distribuição do mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), primata endêmico do sul da Bahia, se caracteriza pela presença de manchas de florestas maduras e em regeneração, assim como cultivos agroflorestais onde os pés de cacau são plantados à sombra das árvores nativas da Mata Atlântica. Essa área, porém, que é já pequena, vem sofrendo com o mesmo desmatamento que já fez desaparecer a espécie do norte de Minas Gerais em um passado não muito distante.
Nos últimos 30 anos, a área de ocorrência do primata, também conhecido como mico-leão-baiano, foi reduzida em aproximadamente 42% – de 22.700 km2 para 13.215 km2 -, enquanto sua população caiu em cerca de 60%. Estima-se que ainda existam entre 16 mil e 21 mil indivíduos na natureza no sul da Bahia, a maioria do município de Ilhéus.
Os dados fazem parte da tese de doutorado do biólogo Joanison Vicente dos Santos Teixeira, diretor-executivo e coordenador de pesquisa da Almada Mata Atlântica Project (Amap), organização ambientalista germano-brasileira que tem apoiado financeiramente projetos científicos e ações de proteção à espécie, símbolo e bandeira maior da instituição.
Esse pequeno primata dorme em partes ocas de troncos de árvores nativas e se movimenta em grupos de cinco a onze indivíduos que evitam repetir o local de repouso por causa dos predadores. Essa característica curiosa exige esforço contínuo para localização de abrigo e alimento em fragmentos que, fora das áreas protegidas, vêm encolhendo por pressão de atividades como a pecuária, a intensificação do próprio manejo nas cabrucas e a expansão de cultivos como café e eucalipto.
“Eles defendem seus territórios de outros grupos. Se um grupo entra ou se aproxima do território do outro, possivelmente eles entrarão em conflito, representado por vocalizações mútuas”, afirma Teixeira, que também destaca o espírito colaborativo da espécie: “Nos grupos, apenas um casal está apto a reproduzir e os filhos mais velhos ajudam a cuidar da prole”.
Diante das ameaças, o cultivo de cacau à sombra das árvores nativas – conhecido como cabruca -, além de uma alternativa regional economicamente viável, tem sido fundamental para a sobrevivência do mico-leão-baiano. “Essa é uma combinação perfeita”, opina o biólogo.
Ele destaca que manter o que ainda existe, além de conectar fragmentos pela regeneração florestal, tem sido parte dos esforços de organizações não governamentais e instituições de pesquisa nacionais e internacionais que reconhecem a importância do primata para o bioma e se uniram para salvá-lo da extinção. A Amap é uma delas.
O pesquisador está envolvido na atualização de dados como extensão de ocorrência, área de ocupação e tamanho populacional, entre outros fatores esclarecedores das condições de sobrevivência desse primata no longo prazo, além de gerar subsídios para a defesa da espécie e do seu habitat.
“A cada quatro anos atualizamos os parâmetros populacionais que auxiliam no planejamento de estratégias de conservação”, observa. “Precisamos também despertar interesse para a tomada de decisão política com esse objetivo.” A sensibilização da sociedade pelas atividades de educação e comunicação é reconhecida como outro desafio a superar.
Cabrucas biodiversas e economicamente viáveis
As cabrucas do sul da Bahia possuem em média 197 árvores nativas, por hectare, o que as tornam viáveis ecologicamente. Entretanto, Teixeira relata que, em 2014, sem considerar parâmetros científicos, um decreto estadual trouxe riscos à sobrevivência do primata ao permitir que as propriedades agrícolas tenham cabrucas com 40 árvores por hectare. “Muitos produtores querem ampliar a produção de cacau e, com isso, reduzem as árvores de sombra”, diz.
Diante dos desafios, ele defende a ampliação da visibilidade da espécie para gerar compreensão sobre sua importância e engajamento pela sua proteção. “Um morador da região não conhecia o mico-leão-baiano que passava pelo seu quintal, mas conhecia o mico-leão-dourado, espécie nativa do estado do Rio de Janeiro, por causa da televisão”, exemplifica. Para ele, é fundamental se inspirar no movimento que tornou a espécie fluminense um símbolo de mobilização pela sua conservação no Brasil.
Mas, para que a situação se reverta em favor da proteção da espécie, o pesquisador explica que a cabruca precisa ser economicamente viável para os pequenos produtores rurais. “Temos nos esforçado para sensibilizá-los de que a produção orgânica é uma forma de agregar mais valor ao produto. Queremos também que eles se sintam mais valorizados. Manter uma alta densidade de árvores de sombra, que também são árvores para os micos, é o nosso maior desafio”, reconhece.
Paralelamente às ações de pesquisa, ele conta que a Amap desenvolve ações de educação ambiental para sensibilizar os produtores e a sociedade em geral. Para isso, a fazenda Bom Pastor, gerida pela organização ambientalista, atua com ecoturismo, envolvendo visitantes na causa de proteção do mico-leão-baiano. No local, além de turistas, se hospedam estudantes e pesquisadores brasileiros e estrangeiros que têm interesse científico na espécie.
Outro papel importante mencionado é desenvolvido pela Associação Cacau Sul da Bahia, uma cooperativa que atua pela produção do cacau no sistema cabruca, da mesma forma que tem avançado na certificação orgânica de grande quantidade de produtores da região, agregando valor ao produto regional e, com isso, protegendo o mico e outras espécies.
Pesquisa e engajamento tem foco em áreas degradadas
Como a maioria dos grupos de mico-leão-baiano está mais presente em pequenos fragmentos de florestas desprotegidas, é justamente nesse tipo de área degradada, em terras privadas, que se concentram as ações de pesquisa e educação ambiental do Projeto BioBrasil.
Essa iniciativa é coordenada pelo Centro de Pesquisa e Conservação (CRC) do Zoológico de Antuérpia, na Bélgica, com administração pela ONG Bicho-do-Mato Instituto de Pesquisa e parceira da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Suas atividades se desenvolvem há duas décadas no sul da Bahia, onde tanto se complementam como dialogam com as práticas da Amap.
Roberto Fiorini Torrico, engenheiro ambiental e especialista em Ecologia, coordenador de pesquisa dessa iniciativa, ressalta que uma das principais preocupações das instituições parceiras envolve os riscos permanentes de perda de habitat, uma das maiores ameaças ao primata. Não por acaso, o projeto prioriza compreender como a degradação afeta as dinâmicas ecológicas das quais dependem a espécie, além dos esforços pela implementação de práticas sustentáveis para sua conservação e a sensibilização pública em escolas e comunidades em áreas de ocorrência do mico-leão.
Esse primata tem forte conexão com as árvores maduras. As bromélias da região são consideradas outras fontes essenciais para a manutenção da espécie, já que no interior dessas plantas encontram-se insetos dos quais se alimentam, e ali também se protegem de predadores e fortes chuvas. “Eles consomem muito tempo em busca de insetos que vivem nessas bromélias”, observa o pesquisador.
Com o avanço do desmatamento, o pesquisador alerta que “além dos riscos a essa espécie-símbolo regional, estamos também perdendo serviços ecossistêmicos [proteção do solo, das fontes de água doce, equilíbrio climático e outros fundamentais à conservação da biodiversidade e ao bem-estar humano]”. O processo de certificação de produção orgânica é reconhecido como aliado da conservação da natureza nesta região
De 2002 a 2010, o projeto BioBrasil teve atuação em uma área degradada incorporada à Reserva Biológica de Una. A partir dessa época, o trabalho de coleta de dados e monitoramento ecológico dos micos foi iniciado em trechos de propriedades com vocação agrícola, onde fragmentos florestais e pequenas cabrucas dividem espaço com plantios de hortaliças, espécies frutíferas e até seringais que se regeneram após fase de abandono. O pesquisador observa que, mesmo não sendo nativa, essa espécie da Amazônia serve de abrigo e possui grandes bromélias usadas pelos micos.
As atividades de campo envolvem o monitoramento de quatro grupos de mico-leão-baiano e, mais recentemente, de um grupo de sagui-de-wied (Callithrix kuhlii). Na mata, essas espécies andam juntas e não competem entre si; pelo contrário, se ajudam. “Quando tem predador na mata, elas vocalizam umas para as outras”, ressalta Torrico.
O monitoramento envolve fatores como a posição geográfica dos grupos, a frutificação das árvores que eles utilizam, além do comportamento dos encontros entre bandos. Esses encontros ocorrem mais em áreas onde os primatas vivem mais oprimidos devido à menor conectividade da floresta, “o que não somente dificulta a procura por alimentos, principalmente frutos, como também reduz a possibilidade de encontrar novos companheiros”.
Nesse cenário, as ações educativas foram e continuam sendo fundamentais na região. “Em colaboração com estudantes e professores da Universidade de Santa Cruz (UESC), a gente traz questões complementares ao projeto que desenvolvemos”, argumenta.
O trabalho educativo envolve a realização de oficinas para promover a valorização da cabruca e da biodiversidade, além da visitação de uma trilha na área de estudo por estudantes da região. Complementarmente, uma das práticas de comunicação ambiental é a chamada Tarde Cultural Mico-leão-baiano, que convida a comunidade para atividades de sensibilização ambiental.
Enquanto as crianças participam de contação de histórias, os jovens são engajados por um plano de ação que envolve o fortalecimento do socioativismo. Em função dessas práticas, já teve grupo que se voluntariou para atividades socioambientais nas suas comunidades, incluindo a limpeza de áreas importantes para a proteção de fontes de água.
“Percebemos nos jovens um forte interesse pelas questões relacionadas à natureza, além de um grande potencial como agentes de mobilização”, conclui Torrico. Ele espera também despertar nesse público a intenção de atuação futura em pesquisa.
Ampliar rentabilidade pode reduzir a substituição das cabrucas
O biólogo Leonardo Oliveira está preocupado com o avanço do desmatamento regional e suas inúmeras interconexões. Como professor da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da UESC, além de diretor científico do Bicho do Mato Instituto de Pesquisa, ele tem observado que a questão ecológica não será resolvida sem alternativas econômicas para os pequenos produtores. “Sem diversificação agrícola e na ausência de ações de fiscalização, o corte de árvores nativas vem sendo a única alternativa para muitos deles”, explica.
Mas, além da diversidade agrícola, os pequenos produtores precisam de rentabilidade. Como exemplo, o pesquisador menciona que uma saca de 60 quilos de cacau orgânico, destinado ao segmento gourmet de consumo, alcançava R$ 800,00, contra R$ 200,00 do produto sem valor agregado, até abril deste ano. Porém, devido à queda na safra africana provocada pela crise climática, sobretudo em países como Costa do Marfim e Gana, dentre os líderes da produção de cacau global, os preços têm oscilado com altas históricas que no sul da Bahia já chegaram à cotação de R$ 900,00 por arroba de 15 quilos em maio.
A mudança de cenário pontual traz um misto de entusiasmo e também de preocupação, tendo em vista o risco de desmatamento das cabrucas para ampliar a produção cacaueira, tendência que já vem ocorrendo na região.
Envolvido com estudos sobre o comportamento dos micos na cabruca desde 2007, ele tem visto o fortalecimento de parcerias nacionais e internacionais para estudos e ações de mobilização pela proteção dessa espécie no sul da Bahia. “Temos realizado oficinas, debates e outras ações de diálogo nesse contexto regional de muitos desafios”, observa.
Nesses encontros tem-se discutido que a conversão de cabrucas em plantação de cacau a pleno sol leva à perda de biodiversidade e de inúmeros serviços ambientais. Para reverter o problema, as instituições parceiras entendem que também é crucial vencer a desvalorização cultural e econômica desse tipo de cultivo e garantir fontes de financiamento. Outra ideia é tornar o mico-leão-baiano um mascote regional, gerando sensibilização e engajamento pela sua proteção.
Dentre outras iniciativas, o projeto no qual Oliveira atua também tem intenção de apoiar ações de recuperação de Reserva Legal (área que por lei não pode ser desmatada nas propriedades privadas) e Áreas de Proteção Permanente (APP), como matas de beiras de rios, nascentes, topos de morros e outras de grande importância para a proteção da biodiversidade e de fontes de água.
“Precisamos recuperar essas áreas e conectar fragmentos formando corredores de mata com as áreas protegidas dessa região, evitando assim que esses ambientes sejam ocupados por monoculturas”, reitera o pesquisador. “A cabruca é uma agrofloresta associada à produção de alimentos, que é melhor do que qualquer agrossistema simplificado como as monoculturas.”
Fonte: UOL