Ana e Guilherme viviam momentos diferentes da vida profissional. Ela, há 20 anos formada, já tinha visto quase tudo; ele, pouco tempo de estrada, ainda disputava por espaço em um grande escritório de advocacia. Entre 2015 e 2016, os dois, sem se conhecerem, alinharam suas trajetórias a de milhares de outros colegas de profissão: abriram o próprio escritório. E Salvador, pouco a pouco, se tornou uma cidade de escritórios de advocacia.
Somente nos últimos dez anos, foram abertos 1.541 deles na capital baiana e 943 no interior do estado, calculou a Ordem de Advogados do Brasil – seção Bahia (OAB-BA), a pedido do CORREIO. No mesmo período, foram fechados 390 em Salvador e outros 90 no resto do estado. Para efeito de comparação, foram criados 746 consultórios odontológicos em intervalo de tempo igual, apenas em Salvador.
A presença de escritórios por Salvador se torna visível à medida que as universidades também se espalham, avaliam juristas. Nos anos 2000, somente cinco universidades ofereciam o curso de Direito e o número de escritórios não passava de 500. Hoje, os estudantes da capital têm à disposição uma lista de 22 faculdades, em uma cidade com 1.882 escritórios.
“É impossível não associar o avanço progressivo das instituições com o mercado. Quanto mais pessoas se formam, mais esse crescimento vai ser observado”, opina o presidente do Conselho Consultivo de Jovens da OAB-BA, Hermes Hilarião.
Em 2016, segundo última análise do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 4.904 baianos se tornaram bacharéis em Direito. Em Salvador, foram 2.494 concluintes. Nem todos eles se tornam advogados: a reprovação no exame da OAB, necessário para exercer a função, ou planos de passar em concursos públicos são dois dos motivos que os afastam da profissão.
Mas, com 43.975 advogados, o equivalente a toda a população de São Sebastião do Passé, cidade da Região Metropolitana de Salvador, a Bahia tem a sexta maior concentração desses profissionais do país e é o quarto estado com mais escritórios em funcionamento.
Donos de si
A expansão dos escritórios de advocacia em Salvador, onde o fenômeno é mais expressivo, ganha um volume nunca antes visto, contudo, após o dia 12 de janeiro de 2016. Os advogados conquistam, na data, uma vitória inédita, verdadeiro divisor de águas na história da profissão: ganham a permissão de abrirem sozinhos o próprio escritório, sem obrigatoriedade de sócios, como previa a lei até então. Basta, a partir daí, pedir o registro na OAB e, depois, se registrar na Receita Federal e conseguir o alvará da prefeitura.
Coube aos prédios, esquinas e ruas de Salvador, então, recepcionar os milhares de escritórios que surgiam em resposta às novas facilidades. Da Avenida Sete, centro tradicional desses espaços, à Avenida Tancredo Neves, atual reduto de advogados, o impacto da mudança na legislação foi vertiginoso.
“Sempre exerci a atividade em parceria com outros colegas, porque era o exigido. Quando começou a ser discutida a mudança, em 2013, eu já comecei a acompanhar. Tinha vontade de me testar sozinha, de administrar todas as coisas”, conta Ana Carla Fracalossi, 42, que abriu um escritório sozinha em março de 2017, na Tancredo Neves. Na vizinhança, na mesma via, no Mundo Plaza Empresarial, 55 das 256 salas são ocupadas por escritórios.
Dos escritórios abertos, seja em Salvador ou no interior, 80% são resultado da possibilidade de independência, estima Humberto Valverde, presidente da Comissão Sociedades de Advogados da OAB-BA. “Existiam escritórios informais, o advogado atuava como pessoa física. Com a mudança, muitos se formalizaram, impactando esse número de escritórios”, justifica.
‘Mãozinha’ tributária
A redução de impostos prevista para o mercado de escritórios de advocacia com a alteração na Lei Simples Nacional também é citada como um impulso. Antes, pequenos e médios escritórios precisavam pagar, no mínimo, um tributo de 27,5% sobre os rendimentos. Agora, o imposto varia de 4,5 a 17%. “As tributações são muito benéficas. Para empresas que lucram, no máximo, R$ 4,8 milhões anualmente, geralmente vale muito a pena, já que acaba se pagando menos”, explica Daniela de Andrade Borges, professora de Direito Tributário.
A redução de tributos foi anunciada no momento certo para o advogado Guilherme Bastos, 28. Durante a graduação, abrir um escritório era um desejo. No início de 2015, ajudado pela força da coincidência, pode dar contornos de realidade aos planos. Deixou o emprego, em outro escritório, para abrir, junto com o pai, a própria empresa. “Eu enxergava que não era um passo adequado abrir um escritório assim que me formasse. Precisava me preparar, adquirir experiência”, diz.
E por que não, provoca o professor e coordenador do curso de Direito da Faculdade Baiana de Direito, Adonias Bastos, problematizar o fato de os escritórios se alastrarem logo quando o grau de litigiosidade também cresce? Se tudo pode virar processo, afinal, é preciso mão de obra.
“Temos uma sociedade muito desigual. Se há mais homogeneidade, a gente tem outra tendência. Em sociedades discrepantes como as nossas, tudo acaba virando processo”, afirma Bastos.
Em 2016, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tramitavam no Tribunal de Justiça da Bahia 4,86 milhões de processos. Em 2003, primeiro ano analisado pelo estudo Justiça em Números, eram 1,5 milhões casos pendentes no tribunal.
Princesinha de toga
Até 1997, os moradores de Feira de Santana não tinham opções de faculdades caso escolhessem Direito. A alternativa seria prestar vestibular em Salvador ou partir para o Sul da Bahia, em Ilhéus, onde funcionava desde 1991 a Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Em 1998, o cenário começou a mudar: foi aberta a Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), primeira a oferecer o curso. O mercado jurídico do lugar, então, passou a crescer. E avançou tanto que, hoje, é o principal polo de escritórios do interior do estado. De 2008 a 2018, a OAB registrou a abertura de 97 deles.
O crescimento coincide, também no caso de Feira, com a formação das primeiras turmas de Direito e a chegada de novas faculdades. Mas, é quando são abertas as primeiras redes privadas, entre 2006 e 2007, que as sociedades jurídicas pipocam nas ruas da cidade. “Feira se tornou um polo educacional, atendendo também moradores de municípios vizinhos. E esse público, além de buscar as faculdades da região, procuram os escritórios daqui”, justifica Marcus Cavalhal, advogado e presidente da subseção da OAB no município.
Hoje, diferentemente do passado de poucas alternativas, os estudantes podem escolher entre quatro faculdades. A perspectiva é de que, ainda este ano, as possibilidades se alarguem ainda mais, já que duas faculdades estudam abrir sedes em Feira. Enquanto isso, a subseção comandada por Marcus tenta administrar a distribuição mensal de 50 a 70 carteirinhas para novos advogados. Não há estimativa de número de escritórios existentes na cidade, mas ele pondera que o número de advogados está próximo de 2,5 mil.
Na Princesinha do Sertão, há outro fator que impulsiona a estatística. Na capital baiana, os jovens preferem adquirir experiência para se lançar no mercado; lá, “ele já se joga no mercado abrindo o próprio escritório”, compara o presidente da subseção, que atende 11 municípios. Apesar de ter o maior número de escritórios fora de Salvador, os advogados de outros interiores também têm arriscado. Em Vitória da Conquista, nos últimos 10 anos, foram abertos 70, e, em Ilhéus, 66. Em todo estado, calcula-se a existência de 2.878 escritórios e 52 instituições que oferecem o curso de Direito.
Na BA, 52 faculdades têm curso de Direito
A formação de cada vez mais bacharéis em Direito, associada à febre dos escritórios em Salvador, tem sido motivo de preocupação. Se por um lado, a popularização das universidades aliviou a concorrência, a qualidade das instituições é colocada sob suspeita.
As críticas às autorizações do Ministério da Educação (MEC) para algumas faculdades ensinarem as disciplinas do Direito se tornaram constantes entre juristas. Nos bastidores, parte deles alega que não são aplicadas as exigências mínimas, importantes para a formação adequada de estudantes. As concessões são dadas pela pasta e OAB, embora a decisão final seja mesmo do ministério.
Dentro do ministério, defendem profissionais ouvidos pela reportagem, vence a pressão de grandes conglomerados educacionais. “Raramente, na verdade, a qualidade é levada em conta”, comentou um deles. O MEC não respondeu à reportagem os critérios utilizados na avaliação de faculdades. A repartição responsável por analisar os pedidos de abertura de curso é a Câmara de Educação Superior, constituída por 12 conselheiros escolhidos e nomeados pelo presidente.
Das 52 instituições existentes no estado, o Conselho Federal da OAB, em 2016, recomendou apenas 11; das 22 localizadas em Salvador, apenas quatro, duas públicas e duas privadas, ganharam o selo da instituição. O custo médio da mensalidade na capital é de R$ 1.700. Para a presidente da Comissão de Ensino Jurídico, Cinzia Barreto, o problema é que em algumas universidades não há diálogo com a “realidade social”. “Sair um pouco das paredes da sala é essencial. Se não, parece um colégio particular, a profissão é precarizada”, defende.
Na Ufba, que tem o melhor curso avaliado na Bahia, o coordenador defende que a mudança “é uma questão de conceber corretamente o que uma universidade significa”. “Há uma ideia de que a faculdade está ali para reproduzir um conhecimento já existente. Não: é preciso rever essas barreiras. A ideia é que a pesquisa reveja e avance”, diz Francisco Bertino.
Melhores cursos de Direito – O Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes avalia o rendimento dos alunos. Último em Direito é de 2015:
BRASIL
1º Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
2º Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
3º Universidade de São Paulo (USP)
4º Escola de Direito de São Paulo (Direito FGV)
5º Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
BAHIA
15º Universidade Federal da Bahia (Ufba)
46º Universidade Salvador (Unifacs)
73º Universidade Católica do Salvador (Ucsal)
92º Faculdade Baiana de Direito e Gestão
153º Faculdade Nobre de Feira de Santana (FAN)
*Supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier e da editora Mariana Rios