O acordo de delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid recebe aval do STF (Supremo Tribunal Federal) em meio a críticas recorrentes de alguns ministros a particularidades desse instrumento de colaboração.
A corte concentra hoje magistrados que, depois da ascensão da Lava Jato, se mostraram contrários à delação tanto em falas quanto em decisões, até o limite de comparar métodos adotados pela operação a práticas de tortura, como foi o caso do ministro Dias Toffoli. O acordo com Cid, ex-auxiliar de Jair Bolsonaro (PL), foi homologado neste sábado (9) pelo ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos que envolvem o ex-presidente.
Toffoli, na decisão da última semana em que declarou imprestáveis as provas oriundas dos acordos de leniência (espécie de delação premiada de pessoa jurídica) da empreiteira Odebrecht, escreveu que agentes públicos cometeram erros em série na Lava Jato.
Para o ministro, servidores agiram em conluio para atingir autoridades, empresas e alvos específicos. Ele também afagou o presidente Lula (PT) ao dizer que sua prisão foi uma armação.
Sem citar diretamente as delações, o magistrado relembrou uma declaração sua durante julgamento na Segunda Turma, na qual afirmou que membros da força-tarefa se valeram “de uma verdadeira tortura psicológica, um pau de arara do século 21, para obter ‘provas’ contra inocentes”.
A expressão “pau de arara” descreve uma técnica usada pela ditadura militar (1964-1985). Nela, a pessoa fica suspensa em uma barra, com braços e pés amarrados, enquanto sofre golpes e choques elétricos, por exemplo.
Toffoli afirmou que centenas de acordos de leniência e delações premiadas “foram celebrados como meios ilegítimos de levar inocentes à prisão” e agora “caem por terra, dia após dia”.
Ministros como Gilmar Mendes, Cristiano Zanin —advogado de Lula na Lava Jato e indicado por ele para o STF— e Kassio Nunes Marques também já se posicionaram contra colaborações, discordando delas no mérito ou usando como justificativa inconformidades.
Quando defendia o presidente, Zanin disse que “citar o nome de Lula tornou-se condição obrigatória para que réus e até condenados” obtivessem benefícios em Curitiba, com decisões judiciais muitas vezes amparadas somente em relatos.
Há a especulação de que o nome escolhido pelo presidente para substituir Rosa Weber —que se aposenta neste mês— seja igualmente avesso ao lava-jatismo e tenha perfil garantista, ou seja, com tendência a privilegiar os direitos individuais e a presunção de inocência nos julgamentos.
A delação negociada por Mauro Cid com a Polícia Federal foi ao gabinete de Moraes para homologação. Um dos aspectos analisados para aceitar ou não a cooperação é que vantagem dará às apurações. Avalia-se, por exemplo, o que o militar pode apresentar de novo e quais provas vai fornecer.
Cid é investigado em várias frentes e estava preso desde maio em unidade militar em Brasília. Seu pai, o general da reserva do Exército Mauro Lourena Cid, foi alvo de operação de busca e apreensão da PF no caso das joias. Sua mulher, Gabriela Cid, depôs na apuração sobre falsificação de cartões de vacina.
Moraes já fez manifestações favoráveis às delações, com a ressalva de que a estratégia não pode ser usada isoladamente para fundamentar sentenças sem que outras informações corroborem as afirmações. Ele prega cautela e endossa a visão de que se trata de um meio de obtenção de prova.
A discussão sobre a situação de Cid, em tese, só deverá envolver outros ministros em caso de intercorrência, como algum pedido de invalidação. Por ora, a responsabilidade é do relator dos inquéritos.
Em julho, o STF teve unanimidade em um caso relatado por Moraes que permitiu a colaboração em casos de improbidade administrativa, isto é, na esfera civil. No voto, ele cobrou obediência a certos parâmetros, como a necessidade de reunir provas que ratifiquem as palavras.
O entendimento foi acompanhado pelos outros nove ministros do julgamento —Toffoli, Gilmar, Kassio Nunes Marques, Rosa, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, André Mendonça, Edson Fachin e Luiz Fux.
Gilmar é um notório crítico da forma como a Lava Jato aplicou o instrumento. Ele se contrapôs, principalmente, a acordos homologados pelo ex-juiz Sergio Moro, que hoje é senador pela União Brasil-PR.
O ministro do STF também já equiparou à tortura as delações fechadas com colaboradores que somavam longos períodos de prisão. Quando vieram à tona as mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil expondo a proximidade entre Moro e procuradores, ele considerou que os abusos ficaram escancarados.
Gilmar sugeriu que membros da operação induziam presos a delatarem pessoas específicas e chegavam às raias da chantagem, ameaçando de prisão e investigação parentes dos candidatos ao acordo para deixá-los vulneráveis e, com isso, conseguirem extrair os relatos desejados.
“As pessoas só eram soltas, liberadas, depois de confessarem e fazerem acordo”, disse o magistrado, em maio, durante sessão. “Coisa de pervertidos. Claramente se tratava de prática de tortura usando o poder do Estado.”
No auge da Lava Jato, chegou a ser apresentada no Congresso proposta de petistas de proibir acordos com acusados presos.
Em 2021, o STF travou intenso debate sobre o tema ao julgar o caso do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Sete dos 11 ministros votaram para revogar a homologação da colaboração dele com a PF, dando razão à Procuradoria-Geral, que apontou ausência de aval do Ministério Público.
Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, se alinhou na época à tese de que, além da falha de origem, a colaboração não teve eficácia. Ele também atendeu a pedido do ex-presidente da Petrobras José Sérgio Gabrielli e derrubou uma multa aplicada a ele por entender que a sanção se baseou apenas em delação, “sem outras provas mínimas a corroborarem a acusação”.
A delação também é aventada como alternativa para outros ex-auxiliares de Bolsonaro, embora com menos chances.
O ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, preso desde agosto por suspeitas de interferência da corporação nas eleições de 2022, refutou a hipótese por meio de sua defesa. O advogado Eduardo Simão disse que o instrumento é “para criminoso” e que seu cliente “é um herói nacional”.
A defesa de Anderson Torres também descartou um acordo do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, argumentando que ele pretende colaborar com as investigações da PF. Torres, que deixou o cárcere em maio, estava preso desde janeiro por suposta omissão nos ataques golpistas do dia 8.
Joelmir Tavares, Folhapress