Para o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, “os gastos com cartão corporativo, os sigilos e agora essa minuta demonstram que Bolsonaro esteve preocupado, claro, com a sua própria família, não a brasileira, e com manter-se no poder a todo custo”
São Paulo – A minuta de um projeto golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), encontrada pela Polícia Federal na casa de seu ministro da Justiça Anderson Torres, nesta semana, deve complicar a situação jurídica de Bolsonaro no Brasil. É o que avalia o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em entrevista a Rafael Garcia, na edição desta sexta-feira (13) do Jornal Brasil Atual.
Para o especialista, o rascunho de decreto para que o ex-governo implementasse uma medida cujo objetivo era mudar o resultado da eleição prova que Bolsonaro conspirou por um golpe de Estado e que ele “jamais esteve comprometido com a democracia”. O que deve motivar processos contra o ex-presidente “que possam conduzi-lo à prisão”. Atualmente nos Estados Unidos, o ex-mandatário é alvo também de uma mobilização de congressistas daquele país que cobram sua extradição.
Além disso, os parlamentares dos EUA também pediram, em carta na última quarta (11) ao presidente Joe Biden, que coloque o FBI, a polícia federal do país, para investigar se e como os ataques aos Três Poderes, em Brasília, no último domingo (8), foram planejados em território americano.
Extrema-direita orquestrada
“Porque o que está muito claro é que essas tentativas de golpe a todo custo são organizações que orquestram formas de tentativa de tomar o poder. Aconteceu com o (ex-presidente dos EUA Donald) Trump, quando ele incentivou uma multidão a invadir o Capitólio. Na Bolívia, em 2019, aconteceu algo muito parecido quando o Evo Morales conquistou sua quarta vitória. Houve queimas de atas eleitorais, que atrasaram a divulgação de um resultado final idôneo. Então, tudo isso vai mostrando que a extrema direita mundo afora tem métodos orquestrados, pré-fabricados, e no Brasil não foi diferente”, observa o cientista político.
Ele completa, lembrando do golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, ao processo judicial que levou à prisão sem provas do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). E a campanha de desinformação contra o processo eleitoral brasileiro, conduzida pelo próprio ex-presidente Bolsonaro. Até aos atos de terrorismo recentemente, em que bolsonaristas tentaram tomar o poder pela força.
As ameaças à democracia brasileira ficaram evidentes, para o professor, com o documento encontrado pela PF em um armário da residência de Anderson Torres, alvo de mandado de busca e apreensão na terça (10). A medida traz, na prática, uma intervenção sob pretexto de apurar supostos abusos de poder, suspeição e medidas ilegais que seriam atribuídas à presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante o processo eleitoral. No caso, o ministro Alexandre de Moraes.
Sem justificativa
O material teria sido produzido após a confirmação da vitória de Lula no segundo turno, em 30 de outubro. Torres, então ministro da Justiça de Bolsonaro, foi nomeado secretário de Segurança Pública do Distrito Federal pelo governador afastado Ibaneis Rocha (MDB) e tomou posse em 2 de janeiro. Porém, em vez de assumir o cargo, resolveu antecipar férias e viajou aos Estados Unidos. Assim, ele estava fora do país no último domingo, quando terroristas bolsonaristas destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Exonerado, o ex-ministro e agora ex-secretário teve ordem de prisão decretada por decisão do STF, que ratificou na quarta a ação de Alexandre de Moraes. Ao saber da descoberta da minuta, Torres justificou em suas redes sociais que o material estava sendo divulgado “fora do contexto”. E que ele seria “triturado oportunamente no MJSP”. O cientista político avalia, porém, que “não há nada que justifique a presença de um documento como esse no interior de uma residência. Absolutamente nada, ainda mais de um ministro da Justiça de Bolsonaro”.
Ao contrário, para Niccoli a minuta mostra que havia uma conspiração golpista vertical. “Vinha de cima para baixo, da alta cúpula do governo. E a gente não pode esquecer que se chegamos a esse ponto, que acaba influenciando golpistas a tomar o poder, é porque o Brasil sempre fez vistas grossas à ultradireita”, critica.
Cartão corporativo acima de tudo
“Não há justificativa. Ele tentou alegar que iria picotar esse papel. Mas por que um papel desse pararia na casa exatamente de um ministro da Justiça? Por que não foi rasgado antes? E pior do que isso, esse papel revela que Bolsonaro jamais esteve comprometido com a democracia. Ele tem dito de forma insistente, para se livrar de qualquer culpabilização legal, que jogou nas quatros linhas da Constituição durante o seu mandato. O que não é verdade”.
Niccoli completa apontando para um desgaste na imagem de Bolsonaro que caminhará também para a “criminalização do bolsonarismo”. Na análise do cientista político, o ex-presidente vem perdendo capital político, inclusive nas redes sociais. Assim como “arranhou” a imagem que tentava construir de “homem simples e do povo” com a divulgação de gastos milionários em seu cartão corporativo, expostos com a perda do sigilo decretado pelo governo Lula.
“Os gastos com o cartão corporativo, os sigilos e agora essa minuta demonstram que Bolsonaro esteve preocupado, claro, com a família, não a brasileira, mas a própria família, e com manter-se no poder a todo custo, sem seguir as regras constitucionais”, conclui Paulo Niccoli Ramirez.