Diretor do Instituto Luiz Gama, o advogado Camilo Onoda Caldas afirma que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) estabeleceu um “ponto de partida” contra o racismo ao fixar que o financiamento de candidatos negros deve ser feito de forma proporcional e atuou para evitar que as candidaturas negras sirvam apenas para puxar votos para os partidos.
“É uma decisão importante que estabelece um ponto de partida. Deve ter impacto em 2022? Vai ter impacto. Vai haver uma mudança radical? Acredito que não. A questão racial, ela se resolve com um conjunto de medidas, e não com uma única medida”, afirma Caldas.
Ontem o TSE decidiu que a partir das eleições de 2022 os recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário utilizados nas campanhas devem ser repartidos de forma proporcional ao número de candidatos e candidatas negras de uma legenda.
A distribuição proporcional também deverá ser observada na divisão do tempo de propaganda em rádio e TV no horário eleitoral gratuito a que o partido tem direito.
Entenda a regra
Por exemplo, se entre os candidatos homens de um partido 60% forem de negros, então esse grupo deve receber 60% dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral destinados às candidaturas masculinas.
Por sua vez, se entre as candidaturas femininas 40% forem de mulheres negras, a proporção dos recursos destinadas às candidatas negras deve corresponder também a 40% do total recebido pelas candidaturas femininas desse partido. O cálculo vale apenas para os recursos dos fundos públicos de campanha e não abrange doações recebidas pelos candidatos.
A decisão foi tomada no julgamento pelo TSE de uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ).
“Em um país profundamente marcado pelo racismo, não é por acaso que a consulta foi feita por uma mulher negra. As mulheres negras sofrem um duplo preconceito”, afirma Caldas. “A democracia é a possibilidade de disputar igualmente uma eleição”, diz o advogado.
‘Ameaça de retrocesso’
Em entrevista à reportagem do UOL, ele diz que a decisão chega num momento em que há ameaça de retrocessos em direitos da população negra.
“Essa decisão do TSE é uma decisão acertada, é uma decisão oportuna, especialmente num momento em que os avanços na luta por direitos de minorias e a luta nas questões étnico-raciais se veem de certo modo ameaçadas”, afirma Caldas.
“Já foi conquistado um espaço com muita luta e a gente chegou num ponto em que existe certa ameaça de retrocesso, em que certas forças tentam reagir a importantes conquistas históricas do movimento negro”, diz o diretor do instituto.
O Instituto Luiz Gama tem atuação voltada para a assessoria jurídica de movimentos populares com ênfase nas questões sobre negros, minorias e direitos humanos.
A entidade recebe o nome do advogado abolicionista nascido em 1830 na Bahia e que teve sua formação jurídica em São Paulo, onde morreu em 1822. Gama atuou nos tribunais pela libertação de negros escravizados e ganhou notoriedade por defender que, ao matar seu senhor o escravo, age em legítima defesa.
Efeitos indesejados
Na entrevista, Camilo Caldas também comenta a objeção feita por ministros do TSE durante o julgamento de que a regra poderia provocar efeito contrário ao desejado e inibir o lançamento de candidaturas negras.
Para o advogado, a possibilidade de que partidos excluam políticos negros de seus quadros já existe sob as regras atuais e não deve sofrer influência da decisão.
Segundo Caldas, a regulamentação terá impacto para que as candidaturas negras deixem de ser utilizadas pelos partidos apenas como um meio de ampliar o número de votos recebidos pela legenda.
No sistema de eleições proporcionais, que elege deputados e vereadores, as vagas conquistadas são calculadas com base no total de votos recebidos pelo partido.
Esse mecanismo, diz o advogado, atualmente desfavorece candidaturas negras, que recebem menos recursos e tempo de propaganda.
É nessa hora que o racismo pode atuar, privilegiando uns em detrimento de outros e fazendo com que sirvam de escada para os demais”
Camilo Caldas, advogado e diretor do Instituto Luiz Gama
Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
UOL – Qual vai ser o impacto da decisão do TSE nas eleições de 2022?
Camilo Caldas – Eu acho que a gente não pode superestimar o impacto por dois motivos. Primeiro, pela regra da experiência, se a gente olhar o impacto que as cotas para mulheres tiveram não é tão significativo quanto se poderia supor. Fazendo uma analogia, é possível que não tenha um impacto tão extraordinário.
Segundo, que às vezes os partidos criam mecanismos para burlar do ponto de vista real aquilo que está determinado. Isso tem acontecido nas candidaturas femininas. E terceiro é o fato de que se essa mudança não vem acompanhada de um conjunto de outras mudanças, ela é apenas um ponto de partida. Ela não resolve a assimetria de poder que existe entre masculino e feminino, entre branco e negro. Isso não liquida a questão.
É uma decisão importante que estabelece um ponto de partida. Deve ter impacto em 2022? Vai ter impacto. Vai haver uma mudança radical? Acredito que não. A questão racial, ela se resolve com um conjunto de medidas e não com uma única medida.
E quais medidas podem superar a questão racial?
Eu diria que passa por dois aspectos, o primeiro é um aspecto cultural. A questão racial começa a ser superada quando você transforma determinada cultura. É necessário uma mudança de mentalidade, de estereótipos, de preconceitos. Tem que ter uma mudança do ponto de vista cultural para ter um avanço substancial na questão racial. Esse é um eixo.
O segundo é uma mudança do ponto de vista econômico e consequentemente de poder. O racismo está muito atrelado ao fato de termos assimetrias de poder e assimetrias econômicas. Se não houver mudança efetiva econômica e de poder de determinados grupos, isso vai se refletir nas visões preconceituosas, nas visões racistas.
Ministros do TSE afirmaram que a regra poderia provocar um efeito indesejado e inibir a indicação de candidatos negros pelos partidos. O senhor concorda?
A tendência é que não haja isso. Por quê? Por que pelas regras atuais, se eu quero rejeitar um determinado candidato negro, ou eu não coloco ele [na lista de candidatos], ou coloco e não dou a verba. Então, os partidos que já não têm uma inclinação, no sistema atual, já poderiam excluir.
A disputa eleitoral e pela apresentação de candidatos ela se faz em função do poder político que aquele candidato tem. O cálculo que o partido faz é: será que aquele sujeito consegue atrair votos para a minha legenda? O critério é o da viabilidade eleitoral.
Especialmente no sistema proporcional, uma vez que você coloca esse candidato dentro da sua legenda, você pega o capital político dele para ter um pouco de voto para eleger candidatos mais fortes. No final, eu usava o candidato [negro] para fortalecer minha legenda e privilegiar outros candidatos.
Aí inclusive é o momento em que o racismo pode atuar, porque trago candidatos, negros e brancos, todos com alguma viabilidade, só que invisto recursos e tempo de TV nos homens brancos em detrimento das mulheres negras. Então eles ficam e ajudam os outros a serem eleitos.
É nessa hora que o racismo pode atuar, privilegiando uns em detrimento de outros e fazendo com que sirvam de escada para os demais.
A partir do momento que se estabelece a distribuição proporcional, essa disparidade de investimento que fazia com que apenas se utilizassem de determinadas candidaturas para fortalecer outras, ela vai diminuir.
No julgamento, o ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto defendeu que essa regra deveria ser fixada pelo Congresso. O TSE invadiu as atribuições do Legislativo?
Para mim, claramente nesse caso não é possível dizer que o que eles fizeram foi legislar, claramente ali é possível afirmar que o que estão fazendo é apenas extraindo um desdobramento do que já está no conjunto normativo que existe.
Além disso, posso estabelecer uma analogia, se existe o critério de gênero, também poderia ter o critério de raça.
E num país profundamente marcado pelo racismo, não é por acaso que a consulta foi feita por uma mulher negra. As mulheres negras sofrem um duplo preconceito.
A democracia é a possibilidade de disputar igualmente uma eleição.
Fonte: UOL