Comunidades rurais são as mais rejeitadas por candidatos
Baianos estão sem atendimento médico em cidades do interior por conta da desistência de profissionais brasileiros que se inscreveram no programa federal Mais Médicos. O problema afeta principalmente as comunidades rurais, que são as mais rejeitadas.
Esses profissionais iriam repor as vagas deixadas pelos médicos de Cuba, que voltaram ao país de origem há cerca de dois meses, com o fim da parceria entre o governo brasileiro e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).
De acordo com a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab), com a saída dos médicos cubanos, sobraram 843 vagas no estado, somadas a outras 222 que ainda não tinham sido repostas pelo Ministério da Saúde, o que totalizava 1.075 vagas.
Os recentes editais do Ministério da Saúde não contemplaram a reposição desses 222 profissionais. Segundo a Sesab, na última planilha enviada pelo MS, foram disponibilizadas 757 vagas, das quais 683 foram homologadas, restando 74.
Essas que não foram ainda homologadas representam desistências dos médicos, muitos deles recém-formados e residentes em cidades de maior porte. Alguns chegaram a viajar ao interior, mas acabaram voltando em menos de uma semana. Outros sequer apareceram.
Secretários municipais de saúde entrevistados pelo CORREIO disseram que alguns médicos deram justificativas para o não comparecimento, como outra oportunidade de trabalho ou aprovação em cursos de mestrado.
Mas também ocorreu de haver profissionais que desistiram das vagas ao conhecer a realidade local das pequenas cidades, onde o atendimento é feito em áreas remotas, com acessos por estradas de chão, muitas vezes precárias.
De acordo com secretários, alguns médicos relataram não ter gostado da cidade que tinham escolhido no momento da inscrição no programa, tendo um “choque de realidade”, ao se deparar com as condições de sobrevivência e trabalho locais.
Sem chuveiro quente
O CORREIO ouviu uma médica de 28 anos que desistiu do programa e mora em Salvador. Ela preferiu não ter seu nome divulgado. A cidade que escolheu, que prefere que a reportagem também não cite, fica no nordeste da Bahia.
A médica foi alojada pela prefeitura da cidade em uma pousada onde “as instalações eram péssimas, nem chuveiro quente tinha e a cama era de cimento”, diz. Ela quis ficar numa pousada melhor, mas “a prefeitura não deixou porque lá tinha muita fofoca”, acrescenta.
“Ainda fui à casa onde uma das cubanas estava morando, estava toda mobiliada, dava para eu ficar tranquila, até me arrumar direito, mas disseram que iam tirar tudo da casa e entregar as chaves ao dono”, contou a médica, que se formou em outubro.
“Minha revolta é que me disseram que tinha transporte na cidade, mas quando cheguei só tinha dois ônibus e eles só me levavam de casa para o posto de saúde. Fiquei só dois dias e fui embora”, médica de Salvador que preferiu não se identificar
Único Médico
No outro lado da Bahia, em Mansidão, de 13 mil habitantes e localizada na fronteira com o Piauí, ocorreu uma situação inversa: o único profissional do Mais Médicos que apareceu é um profissional de 66 anos, que já é aposentado como médico perito.
Gesnner Caetano se inscreveu na primeira rodada de seleção do programa e está na cidade desde meados de dezembro. Nem salário recebeu ainda, um problema que tem ocorrido também na maioria das cidades, segundo relatos dos médicos.
Mansidão não tem hospital municipal e sem os outros três médicos do programa que ainda não apareceram, toda a população que depende de serviço público de saúde está sendo atendida pelo doutor Gesnner.
“Faço uns 25 a 30 atendimentos pelo programa e o resto é um trabalho social da região, faço atendimentos diversos”, disse o médico, que possui 43 anos como profissional e é especializado em ortopedia.
Da prefeitura de Mansidão, ele recebeu R$ 2,7 mil como ajuda de custo para despesas de alimentação e moradia, e tem um veículo à disposição para se locomover, dirigido por ele mesmo. O posto onde atende é no centro da cidade.
“A cidade é muito carente, estou aqui temporariamente, atuando no programa”, Gesnner Caetano, médico de 66 anos
Casos mais graves são transferidos nas quatro ambulâncias da prefeitura para a cidade mais próxima, Santa Rita de Cássia, a 73 km, via BA-351. Assim como todos os acessos a Mansidão, a estrada usada para transportar os pacientes é toda de chão.
Ficou na praia
De acordo com o secretário de Saúde de Mansidão, Valdinar Nogueira, dos três médicos que não apareceram, apenas um fez contato. “Perguntou umas coisas sobre a localização e acabou preferindo ficar em Porto Seguro”, conta.
“Antes, com os médicos cubanos, a atenção básica estava bem tranquila, tudo controlado. Ficaram aqui sem problemas, nos ajudaram muito. Agora ninguém quer vir”, comenta Nogueira. Segundo ele, “a prefeitura está dando comida e roupa lavada para não perder os médicos”.
Em Adustina, próximo da fronteira da Bahia com Sergipe, a ajuda de custo por parte da prefeitura é mais modesta, de R$ 1.200 para hospedagem e moradia. Depois de duas desistências, a cidade conseguiu ocupar as três vagas do programa federal.
Eugênio Santana Carvalho, secretário de Saúde, conta que uma médica foi com a mãe morar na cidade e “tomou um choque de realidade. Quando viu a cidade pequena (com 16 mil habitantes) foi embora”. O outro desistente foi um médico que não apareceu.
“O pessoal chega de fora e fica querendo regalias, sendo que vão receber salário de R$ 12 mil, muito alto para o padrão da cidade, dá para viver tranquilo”, Eugênio Santana Carvalho, secretário de Saúde de Adustina
Os profissionais que atuam em Adustina estão distribuídos em um posto de saúde na zona urbana e dois na zona rural, o mais longe deles a 21 km. “Eles atendem só a atenção básica mesmo”, afirmou o secretário.
Um dos médicos que estão em Adustina é Adeltran Ferreira da Cunha, 50. Natural de Itabaiana (SE), ele está na cidade desde 3 de dezembro e diz que atende cerca de 20 pacientes por dia. Para ele, “o trabalho está bom”.
“Senti muita diferença, Adustina é pequena, e o pessoal tem pouca assistência”, declarou. “O salário do primeiro mês ainda não recebi, me disseram que vai sair junto com o desse mês, dia 30 de janeiro”.
Zona rural
Outra cidade com dificuldades para atrair profissionais do Mais Médicos é Riachão das Neves, no oeste baiano. Por lá, foram preenchidas duas vagas e faltam ainda mais duas, devido a desistências de médicos que alegaram razões pessoais à prefeitura.
“O médico vem para a cidade e pensa que era para a sede, mas o Mais Médicos é para locais de difícil acesso, o pessoal não quer ir pra zona rural. Imagino que esses que desistiram foi por conta disso”, declara a secretária Franciane Moura.
“Aqui as vagas são todas na zona rural, o posto mais distante é a 50 km da sede, no povoado de Rio Branco, mas tem ainda uma unidade satélite, em Gerais, que fica a 70 km, só que lá tem atendimento só uma vez na semana”, completa.
O posto de saúde do povoado de Cariparé, a 30 km da cidade, está sem médico porque ninguém se apresentou. “Quando vêem as condições de moradia e da cidade, desistem”, comentou a secretária.
Também sem querer ter seu nome divulgado, outra médica de Salvador que entrou em dezembro no programa e que está numa cidade do oeste baiano, acredita que “o governo não foi ético com os profissionais”.
“Eles deveriam ser mais claros sobre o que iríamos enfrentar, como atraso de salário. Estou podendo ficar sem problemas, mas tem gente que tem família, contas, e isso atrapalha muito. Estou preocupada com os rumos do programa”, diz.
“O critério para ocupar uma vaga foi como uma gincana: pega quem chegar primeiro. Como se escolhe um médico assim? Muita gente não tem noção do que é trabalhar na zona rural. É um choque de cultura muito grande. O que salva é que as pessoas são muito acolhedoras”, médica que preferiu não se identificar e atende na zona rural da Bahia
Cremeb
Ao comentar sobre a desistência dos profissionais que se inscreveram no Mais Médicos, o médico Otávio Marambaia, conselheiro do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) e do Conselho Federal de Medicina (CFM), disse que “essas pessoas não estão submetidas a um regime ditatorial para obrigá-las a ir para qualquer lugar”. “As vagas certamente foram descartadas pelas pessoas que encontraram condições ruins de trabalho”, afirmou. “Uma coisa que o Conselho tem insistido é que haja condições adequadas para o médico trabalhar e produzir resultados”, acrescenta.
Marambaia critica o programa federal ao afirmar que “ele não resultou em mudanças nos índices nacionais da saúde pública”. Para o médico, “a carreira de Estado para a atenção básica vai fixar o médico no interior quando houver perspectiva de crescimento profissional e de rendimento”.
O médico disse que confia que os profissionais brasileiros vão dar uma assistência melhor do que “os outros médicos que nem sabíamos se de fato eram médicos”. Ele criticou ainda prefeituras que estão “fazendo pressão psicológica”.
“Os prefeitos não querem investir na saúde e estão cortando benefícios que existiam para os profissionais cubanos, então o brasileiro chega lá e só encontra o salário pago pelo governo federal”, afirma.
Fonte: Correio da Bahia