Diversificação com base agroflorestal melhora índices de sustentabilidade ambiental, social e econômica
Às margens da Transamazônica, o assentamento de agricultores familiares Tuerê – considerado o segundo maior da América Latina, com 240 mil hectares – vive uma revolução silenciosa. Ano após ano, áreas de pasto degradado da Amazônia têm dado lugar a lavouras de cacau, a maioria delas de base agroflorestal, o que tem ajudado a intensificar a pecuária entre pequenos produtores.
“A gente tem visto o cacau ocupando diversas áreas que foram de pastagem. O produtor faz isso por diversas razões. Uma delas é que a área já está aberta, e outra porque, ao introduzir o cacau nessas áreas, o produtor vai recuperando esse solo”, explica Adriano Venturieri, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental.
A partir de imagens de satélite, ele tem mapeado a produção de cacau no Pará. Venturieri já constatou que, no Estado, 70% do cultivo ocorre em áreas degradadas, a maioria delas em agricultura familiar com sistemas agroflorestais. “Quando se introduz um sistema agroflorestal, você aumenta sua cobertura do solo, melhorando a infiltração de água no solo e reduzindo a erosão”, complementa.
Até 2021, foram 90 mil hectares de cacau mapeados no Pará, que concentra metade da produção nacional, com 146 mil toneladas, segundo o levantamento mais recente, de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Cerca de 80% desse volume sai de municípios da Transamazônica, entre eles Novo Repartimento, onde fica o assentamento Tuerê. “A tendência é que ocorra uma expansão natural nessas áreas degradadas, recuperando pastagens antigas de baixa produtividade”, diz Venturieri.
Foi mais ou menos assim que Alaion Costa, de 31 anos, deu início à sua lavoura de cacau, que hoje tem 5.000 pés a pleno sol distribuídos em cinco dos 50 hectares de sua propriedade. “Chegou uma hora em que começamos a ter dificuldade para tirar o sustento da terra”, lembra.
A criação de bezerros, atividade tradicional na região, parou de dar retorno cinco anos depois da abertura das primeiras pastagens, o que forçou Costa e sua família (composta de outros seis irmãos) a trabalhar para terceiros.
“A gente só tinha uma moto e geralmente saía em dois irmãos para trabalhar para outros produtores”, recorda Alaion. Partiu dele a proposta de plantar cacau. Ele já se dedicava à atividade como diarista nas fazendas vizinhas, mas o caminho não foi fácil. “Tivemos muita dificuldade no começo. Tem que ter muita insistência para formar a lavoura de cacau. É trabalhoso”, conta o produtor.
A atividade só ganhou dimensão com a chegada do serviço de assistência técnica da organização não governamental Solidaridad. Desde 2013, a ONG tem incentivado a dobradinha cacau-pecuária na região como forma de criar um sistema de produção agropecuária mais sustentável. “Nesse período, conseguimos um aumento de 30% na renda dessas famílias, em média, e reduzir o desmatamento em 64%”, calcula Mariana Pereira, gerente de programa da organização.
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Segundo ela, o objetivo era provar que uma agricultura “climaticamente inteligente” era possível em pequena escala – e, após o atendimento a 230 famílias, esse feito mostrou-se tão viável quanto conveniente. Com rentabilidade seis vezes superior à da pecuária, mas exigindo muito mais mão de obra, o cacau tem sido vetor de intensificação da atividade na região, ainda que de forma inconsciente.
“Quando passa a ter que usar a mão de obra dele e da família no plantio, o produtor intensifica o trabalho. Ele pode até usar outro termo, mas o que ocorre é que ele intensifica a mão de obra quando reduz a área para ter menos trabalho”, afirma Venturieri.
Ele ressalta que é praticamente impossível que o cacau se sobreponha à pecuária na região. São duas as razões para isso. A primeira é a tradição da atividade, que está presente na maioria das propriedades da região. A segunda é a grande área que a criação de gado ocupa. Só em Novo Repartimento há 1,6 milhão de animais, o que faz do rebanho do município o segundo maior do Pará.
Na propriedade de Alaion, o plantio do cacau levou à implementação de 6 hectares de pasto rotacionado em parceria com a Solidaridad, o que ajudou a dobrar a taxa de ganho de peso dos animais, que hoje fica entre 550 e 600 gramas por dia. Já a taxa de lotação passou de duas unidades por hectare para oito.
Além da melhoria de rentabilidade, o principal impacto que o produtor sentiu foi a facilitação do manejo, que antes exigia pelo menos duas pessoas. “Quando você vai caminhando para outro piquete, eles [os animais do rebanho] vão atrás. Parece até que eles têm consciência de que vão pra um pasto melhor”, descreve.
Atuação do projeto
O cacau agroflorestal e o pastejo rotacionado são os pilares do trabalho da Solidaridad em Anapu, Pacajá e Novo Repartimento, os três municípios em que a ONG atua na Amazônia. Ao todo, a organização criou dez unidades demonstrativas na região no início do projeto, cada uma com cerca de 6 hectares.
“Naquele momento, a gente trouxe essa perspectiva para os produtores, então foi necessário criar essas unidades demonstrativas. Mas, hoje, essa tecnologia já se disseminou de uma maneira bem satisfatória, a ponto de hoje nós termos produtores replicando o modelo com o próprio recurso”, relata o gerente de programa da Solidaridad, Paulo Lima. O custo de implementação, no entanto, de até R$ 7.500 por hectare, ainda é um empecilho para muitos.
A ONG recebeu um investimento de R$ 25 milhões dos R$ 62 milhões já aplicados pelo fundo JBS pela Amazônia. Com os novos recursos, a meta da organização é alcançar 1.500 hectares de cacau agroflorestal e 1.500 hectares de pasto rotacionado, alcançando 1.500 famílias na região.
“A Transamazônica é uma das regiões de maior desmatamento no Pará. Ela responde por 60% de todo o desmatamento do Estado, que, por sua vez, é o que mais desmata dentro da Amazônia Legal. Esse é o quadro que a gente pode mudar, mas não é só com multa que a gente consegue isso. Tem que ir na raiz do problema”, comenta Andrea Azevedo, diretora do fundo.
Modelo agroflorestal
Quando se trata de pequenos produtores, a raiz do problema é justamente encontrar meios de fazer com que a restauração florestal se transforme em renda para as comunidades locais. E o cacau, assim como outras espécies nativas da região, tem sido uma das alternativas para se alcançar esse objetivo. Cultivadas em sistema agroflorestal, as plantas podem ajudam também a recompor área de preservação permanente, gerando o que o pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental chama de “restauração produtiva”.
“O produtor não vai recompor a cobertura original, mas vai conseguir reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, sequestrar carbono, melhorar a qualidade da água, gerar serviços ecossistêmicos”, enumera Adriano Venturieri. Para ele, o modelo “é o que é possível” fazer em casos como o do assentamento Tuerê.
O potencial econômico e ambiental do cacau agroflorestal também chama a atenção de empresas interessadas em investir na restauração florestal. É o caso da Belterra. Fundada há quatro anos pelo geógrafo Valmir Ortega, a empresa busca modelos de negócio economicamente viáveis para ajudar o Brasil a atingir a meta de restaurar mais de 70 milhões de hectares de pasto degradado. “Nós vamos ter que fazer essa restauração com modelos que sejam capazes de atrair investimento na escala dos bilhões de reais”, resume Valmir. “Não vai ser só com filantropia que vamos conseguir isso.”
A empresa escolheu justamente o cacau como espécie-chave em seus plantios, que incluem também açaí, cupuaçu, pupunha e dendê cultivados em áreas arrendadas de pequenos e médios produtores. Ao todo, a Belterra já implantou 2.000 hectares e tem outros 8.000 hectares contratados para implantação até 2025. A meta, segundo Ortega, é chegar a 50 mil hectares até 2030.
“O cacau representa uma mega oportunidade comercial para o Brasil. O país já foi o primeiro produtor mundial, mas hoje nós temos que importar cacau da África para abastecer nossa indústria de chocolate, que exporta. Nosso primeiro desafio é ajudar a eliminar a importação e fazer do Brasil autossuficiente em cacau em três ou quatro anos”, afirma o diretor da Belterra.
Vantagens
A capacidade regenerativa e de geração de renda do cacau na Amazônia passa, necessariamente, pela exploração dessa cultura em modelo agroflorestal, segundo alerta o pesquisador Adriano Venturieri, da Embrapa Amazônia Oriental. “Em algumas regiões, está acontecendo esse movimento de plantar cacau a pleno sol, mas a médio e longo pra-zo isso vai ser ruim”, afirma ele.
Apesar de, nos primeiros anos, ele ter produtividade cerca de 40% maior que a do cacau agroflorestal, o cultivo a pleno sol, sem a presença de outras espécies, tende a perder o vigor com o passar do tempo, explica o especialista. Além disso, as plantas ficam mais suscetíveis a pragas e doenças, o que significa que, além de enfrentar paulatina queda de produtividade, o produtor passa a ver o custo aumentar.
Outra vantagem do cacau agroflorestal está no aspecto ambiental. De acordo com os cálculos da ONG Solidaridad, para cada hectare implantado, há o sequestro de 12 toneladas de carbono equivalente da atmosfera. Isso é três vezes mais do que o índice de uma pecuária extensiva com boas práticas na região, que fica entre 4 e 4,5 toneladas de carbono equivalente.
“Esse binômio cacau-pecuária, além de trazer renda para as famílias, o que é muito importante, também entra como componente de sequestro de carbo- no”, destaca o pesquisador.
Riscos
No quesito social, a presença de outras espécies aumenta a diversificação produtiva dentro das propriedades, um feito que reduz o impacto das oscilações de mercado sobre a renda dos agricultores. “O risco de o produtor trabalhar só com o monocultivo do cacau é que vai todo mundo produzir cacau ao mesmo tempo. Assim, quando o preço do cacau recua, o produtor fica muito endividado, já que ele precisa de recurso o ano inteiro”, conclui Adriano.
Mesmo assim, o modelo menos sustentável tem atraído investimento. “Tem muita empresa que incentiva o plantio a pleno sol porque a produtividade no início do processo é melhor. Essas empresas precisam e querem ter mais produção, então, elas incentivam monocultura, adensamento. Só que isso pode causar problemas a médio e longo prazo”, observa.
Um dos riscos, segundo o pesquisador, é a região cacaueira da Amazônia passar pelo mesmo processo que ocorreu no sul da Bahia, onde o avanço da doença vassoura de bruxa dizimou plantações no início da década de 1990.
Outro risco é o aumento desenfreado da produção levar a um desequilíbrio de mercado a longo prazo. Para o especialista, uma das saídas é a criação de políticas públicas que valorizem a amêndoa produzida em sistema agroflorestal de tal forma que esse modelo compense a diferença de produtividade que existe nos primeiros anos.
*O jornalista viajou a convite da Fundo JBS pela Amazônia