Para eles, o Congresso Nacional não está preparado e não tem a competência necessária.
A Lei 13.454, de 23 de junho de 2017, que autoriza a produção, a comercialização e o consumo, sob prescrição médica, dos inibidores de apetite (anorexígenos sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol), derrubou uma medida da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de 2011, que havia proibido a comercialização de medicamentos desse tipo, e transformou em “decisão política” uma resolução que deveria ser estritamente técnica e baseada em evidências científicas.
Em termos gerais, essa é a visão dos pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Os especialistas afirmam que o Estado tem o dever de proteger a saúde, e que cabe à Anvisa determinar, ou não, o uso de qualquer medicamento.
Especialistas da área de toxicologia, epidemiologia, vigilância sanitária, assistência farmacêutica e segurança do paciente foram ouvidos pela ENSP sobre a decisão do Congresso Nacional. Todos os pesquisadores refutaram a sanção da lei, lembraram que esse tipo de aprovação pelo congresso brasileiro é única no mundo e questionaram os possíveis interessados na liberação dos inibidores de apetite.
Chefe do Laboratório de Toxicologia da ENSP, o pesquisador Francisco Paumgartten questiona a dimensão política do assunto em detrimento às evidências científicas do uso dos anorexígenos.
Para ele, além da gravidade de contrariar uma decisão do órgão regulador, o Congresso Nacional não está preparado e não tem a competência necessária para realizar análise técnica das evidências de segurança eficácia dos inibidores de apetite. “A Lei de iniciativa parlamentar, do deputado Felipe Bornier, sancionada sem vetos pelo Executivo, transformou em decisão política a autorização para produção e comercialização de determinado medicamento no país”.
Pamgartten afirma que se trata de um caso único – sem precedentes no cenário internacional – um Parlamento assumir a função de órgão nacional de regulação de medicamentos.
Segundo Paumgartten , o Congresso Nacional não está preparado e não tem a competência necessária para realizar a análise técnica das evidências de segurança e eficácia dos inibidores de apetite. “O mais grave no caso foi contrariar uma decisão do órgão (Anvisa) que tem as competências técnica e legal (Lei 9782/99 que cria a ANVISA) para decidir se este ou aquele medicamento é eficaz e seguro (Lei 6360/1976, Art 16, inciso II). Somente a Anvisa pode autorizar o acesso ao mercado consumidor e determinar em que condições o medicamento pode ser dispensado e utilizado com segurança”.
Suely Rosenfeld, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da ENSP, chama atenção para três aspectos sobre a aprovação da Lei: as reações adversas dos inibidores de apetite, o modelo de sociedade presente no país e a quem interessa essa aprovação. “A decisão de autorizar a comercialização desses medicamentos pelo Congresso Nacional é muito preocupante para os profissionais de saúde”. Suely destaca que a Anvisa, depois de muito debate, cancelou três dos quatro produtos liberados agora pela ineficácia e periculosidade. São ineficazes porque provocam uma perda de peso miúda e reversível e perigosos porque podem provocar fibrilação atrial, resultar em hipertensão arterial, nefrite intersticial e alguns outros efeitos adversos graves e não graves. “A lei reverte uma decisão correta da Anvisa, de anos atrás, que obteve amplo apoio dos profissionais de saúde”.
Outra análise feita pela pesquisadora diz respeito ao modelo de sociedade almejado. “Essa atitude se insere em um modelo de sociedade que não queremos, ou seja, uma sociedade de Estado mínimo, na qual o mercado ‘resolve’ todos os problemas. Há pessoas que defendem abertamente essa linha, mas ela não é a da saúde pública. É preciso ter Estado, ter regulação e ter proteção por parte dos órgãos de governo para que a população possa se sentir segura em relação à tecnologia de da qual da qual é usuária”.
Vera Pepe, pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento e Saúde e do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária da ENSP, lembra que não é a primeira vez que o Congresso Nacional delibera sobre questões exclusivas da saúde. Para ela, a Anvisa cumpre um papel, previsto na Constituição, de proteger a saúde da população. E a Lei contraria essa medida.
“Há um certo perigo quando o Legislativo delibera sobre questões de saúde. Ocorreu o mesmo com a fosfoetanolamina, quando o congresso aprovou uma Lei que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, suspendeu. O STF alegou, na ocasião, necessidade de comprovação cientifica e afirmou que existe uma atribuição legal da Anvisa para controle dos medicamentos no país”