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A importância de celebrar o 20 de novembro – Dia da Consciência Negra

“Povo nas ruas é dinamite, campo minado, exigindo 20 de novembro feriado! Zumbi, o herói dos libertários, guerreiro daqui!” – Gog, Fogo no Pavio)

Dia 20 de novembro de 1995 foi lembrada a morte do grande ícone da população negra na sociedade brasileira, Zumbi dos Palmares (morto em 1695). Na ocasião, os movimentos negros, sindicatos e diversas organizações populares se reuniram numa manifestação para exigir ações concretas de políticas públicas de combate ao racismo e a todas formas de discriminações raciais. Ocorreu, então, a Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida. 

Entre outras reivindicações, a militância organizada exigia o reconhecimento do dia 20 de novembro como a verdadeira data de luta e emancipação da população negra e que este dia se tornasse feriado nacional. 

Por que o dia 20 de novembro? 

Para os movimentos negros, o dia 13 de maio de 1888 não representa de fato a abolição da escravidão, muito menos é uma data que dialoga com os anseios dos/das descendentes de africanos no Brasil. Além de representar uma pauta que manifestava o interesse de uma sociedade branca, essa data se concretiza em um ato, pelo qual se assina uma lei com dois inexpressivos artigos que, obviamente, não dizem nada sobre a inclusão política e social dos negros e negras quanto cidadãos e cidadãs. 

Ademais, o não reconhecimento do dia 13 de maio de 1988 como o dia da liberdade dessa população significa também que os escravizados e escravizadas no país já estavam objetivamente organizados/as e lutando, fato que demonstra o protagonismo dos quilombolas na dinâmica da abolição da escravidão. 

Por isso, foi necessário pensar em uma data que representasse essa população, de modo que significasse a busca pela emancipação humana dos negros e negras na sociedade brasileira. 

Eis o dia de Zumbi e Dandara 

A ideia do Dia da Consciência Negra aconteceu em 1971, em Porto Alegre, por iniciativa do então Grupo Palmares. Segundo consta, um coletivo de universitários se reuniu para pensar formas de protestar contra a proibição da presença de jovens negros num clube da capital gaúcha e discutir a situação do negro, em geral. Entre outras pautas, foi pensada uma data alternativa ao 13 de maio para celebrar a luta e história deste povo. 

Anos depois, com a atuação do Movimento Negro Unificado (MNU), o dia 20 de novembro se tornou um ato político de afirmação da história. Em seu manifesto nacional o MNU declara:

“[…] gritamos contra a situação de exploração a que estamos submetidos, lutando contra o racismo e toda e qualquer forma de opressão existente na sociedade brasileira, e pela mobilização e organização da comunidade, visando uma real emancipação política, econômica, social e cultural.” (1978 apud GONZALES, 1982, p. 59)

A partir de então, o dia 20 de novembro (como data de luta contra o racismo) ganha dimensão nacional, é pautado e celebrado, independentemente de sua institucionalização. Aparece com maior visibilidade, força e apoio social amplo na Marcha contra o Racismo pela Igualdade e a Vida, em 1995. 

No campo institucional, em 2003, foi promulgada a Lei 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), para incluir no currículo oficial das redes de ensino público e privado em todo o país a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. É importante mencionar que a reivindicação de trabalhar a cultura produzida pelo povo negro na escola também é antiga e esteve presente tanto na pauta da fundação do MNU quanto na marcha de 1995. 

Além da obrigatoriedade de um conteúdo que retrate a história e as lutas dos negros e negras como agentes ativos e protagonistas de suas ações e que também aborde as contribuições desse povo na história e cultura do Brasil, a lei estabelece parâmetros curriculares com o objetivo de contribuir com elementos que superem a abordagem do negro de forma pejorativa nas escolas. Nesse contexto, o artigo 79-B define que “o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’” (Brasil, 2003).

Em 2011, o governo brasileiro, por meio da Lei n. 12.519, oficializa o “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”. 

O fato de o Estado reconhecer a importância da oficialização de datas não impediu que a sociedade organizada desse continuidade ao debate e discussão sobre as questões que estão no contexto dessa luta. Assim, ocorre desde sempre a problematização sobre o protagonismo da mulher negra no movimento. Nesse sentido, os movimentos sociais continuam com reflexões sobre as estratégias de luta contra o racismo e seus espaços. 

Desde Lélia Gonzales (e outras) até os dias atuais, a pauta sobre a atuação da mulher negra vem ganhando destaques tanto nas entidades quanto nos espaços acadêmicos. A ideologia que demonstra apenas o homem heterossexual como ícone das lutas sociais vem sendo questionada e, cada vez mais, é destacada a atuação da mulher como protagonista.  É neste contexto que aparece a figura de Dandara, como representante de inúmeras militantes importantes na organização do Quilombo de Palmares, entre outros.


Para conhecer a história de Lélia Gonzales, clique aqui.


Assim, a data de 20 de novembro representa um espaço de reflexões sobre o combate ao racismo e todas as formas de exploração que se estende ao ano todo. É parte de um conjunto de ações afirmativas institucional que se reverbera, sobretudo, nos espaços educativos com atuações formativas que visam colocar e reafirmar na ordem do dia a humanização de uma população imensa que contribuiu e contribui com a história e acumulação da riqueza mundial. 

Nas palavras de Lélia Gonzales: 

“O 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro, juntamente naquilo em que demonstrou sua capacidade de organização da proposta de uma sociedade alternativa; na verdade, Palmares foi o autêntico berço da nacionalidade brasileira ao se constituir como efetiva democracia racial, o símbolo vivo da luta contra todas as formas de exploração.” (1982, p. 57)

O trabalho com a literatura na perspectiva da educação étnico-racial: algumas pitadas 

As práticas mencionadas acima repercutem e influenciam praticamente todas as áreas do conhecimento, fomentando, na dinâmica social, e por sua vez, nas políticas públicas, a necessidade de pensar ações afirmativas que contemplem a população negra. 

O foco aqui é elencar algumas pequenas ideias e possibilidades para pensar o trabalho com literatura na perspectiva da educação étnico-racial. De antemão, não será apresentado nada de novo, porém, ainda de suma importância para refletir sobre o tema em questão. 

Neste particular, a Lei 10.639/03 estabelece que “os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”. Ou seja, trata-se de uma temática que deve ser abordada em todas as disciplinas previstas para a educação básica, porém há uma atenção especial para história, artes e literatura. 

Para trabalhar a literatura na perspectiva das ações afirmativas, é importante considerar duas abordagens (entre outras): 

 1.   Como a população negra aparece nos textos literários de forma positiva (protagonista, não estereotipada, humanizada); 

 2.   Trabalhar com a leitura e estudos de/sobre escritores e escritoras negras nos diversos gêneros. 

A primeira abordagem é importante para superar o recorte pejorativo sobre os negros e as negras ao longo da história. É comum nas literaturas, sobretudo romances, o descendente de africanos aparecer como um sujeito passivo, desprovido de inteligência, pessoa com mau caráter, boçal etc. Essa representação reforça uma ideologia escravagista que, em alguma medida, ainda está em voga na sociedade. Uma vez que as personagens aparecem como figuras caricaturadas, a mensagem que a sociedade passa é a de uma população naturalmente inferior e criminalizada.

Nota-se que se trata de uma construção social, pautada pela ideologia racista. Essa ideologia constrói no imaginário das pessoas (sobretudo no processo educativo) um ideal de “bom ser humano”: o branco. 

Por outro lado, hoje, encontram-se várias obras literárias que valorizam e humanizam as personagens negras. Basta “dar um Google” que aparecem inúmeros títulos de literatura infantil e juvenil que retratam a história e trabalham a autoestima da população negra, rompendo com estereótipos e estigmas sociais. 

A segunda abordagem diz respeito aos escritores e às escritoras negras. Ao consulturar a lista de obras literárias obrigatórias para a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) nos últimos três anos (2019 a 2021), percebe-se que há apenas um escritor negro, Machado de Assis. Se considerarmos que (hipoteticamente) o aluno do 3º ano do Ensino Médio está focado no vestibular, podemos inferir que este passará no mínimo um ano sem ler algum escritor ou escritora negra. Isso significa que a sociedade está dizendo que os/as negros/as não escrevem, ou que, se escrevem, o fazem sem qualidade. 

Os estudos e pesquisas recentes estão postos para desconstruir essa ideologia e demonstrar que não é de hoje que homens e mulheres negras estão produzindo literatura brasileira. 

É possível apresentar alguns nomes, sem excluir muitos outros, presentes nas livrarias e bibliotecas, como: Carolina Maria de Jesus, Carlos Assumpção, Cruz e Souza, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Jarid Arraes, Maria Firmina dos Reis e Lima Barreto. 

Em linhas gerais, o dia 20 de novembro, como o Dia da Consciência Negra, veio para contribuir com a problematização e rompimento de padrões estéticos, morais e culturais na sociedade brasileira. Tem como ponto central pensar em estratégias para construir e reconstruir, a todo momento, a humanidade da população negra. 

Nesse processo, a educação é uma ferramenta fundamental. Porém, a sociedade precisa criar condições para implementar mudanças de paradigmas e, consequentemente, romper com dogmas e estigmas. Assim, celebrar essa data significa também reconhecer que o racismo existe e precisa ser superado. 

Washington Góes é educador social, mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-graduando em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais na Universidade de São Paulo (CELACC/USP). Trabalha como coordenador regional no Educação com Arte no CENPEC Educação, projeto que desenvolve oficinas de arte e cultura para adolescentes internos na Fundação CASA. Atua no coletivo Força Ativa e na Biblioteca Comunitária Solano Trindade.

Referências 

BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. 18 de abr. de 2010.

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo, Cortez: Autores Associados, (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 33), 1989.

GONZALES, Lélia. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, (Coleção Dois pontos. V 3), 1982. 

JORNAL DA MARCHA. São Paulo, outubro de 1995. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/sites/default/files/documents/03D00040.pdf

MOURA, Clovis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1992.

PIRES, DENISE; CAMILO, Plínio. 20 escritores e escritoras negras para ler hoje e sempre. Casa um. Disponível em: https://www.casaum.org/20-escritores-e-escritoras-negras-para-ler-hoje-e-sempre/

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